De cabeça baixa


O escritor e o clímax
maio 15, 2008, 1:32 pm
Filed under: De cabeça baixa, Eventos

Cheguei cedo ontem na Cinematheke, a pedido da produtora do MaPa. O objetivo: gravar uma pequena entrevista que eles usarão, junto com o show, para conseguir patrocinadores para o projeto.

 

A segunda pergunta que me fizeram, apesar de despretensiosa, me fez pensar sobre um assunto que está rondando minha cabeça desde antes do lançamento: a anticlimaticidade da literatura.

 

Nas demais artes, especialmente teatro e música, a carga climática envolvida na hora da apresentação da obra é estupenda. O ator/músico se prepara, ensaia e num determinado dia, numa determinada hora, irá expor seu trabalho para o público. No teatro, então, a arte, o clímax, está apenas ali, naquele palco, com hora marcada. Na música temos também a opção do CD, e no cinema, apesar de guardar semelhanças com o teatro na parte de representação, o autor/ator/diretor etc. não está ali, existe uma mediação de projetor, sala com luzes apagadas e tela em branco.

 

Na literatura não existe clímax. Enquanto a obra é feita, quando o autor está escrevendo, burilando e revisando, ninguém vê, sequer sabe da existência e execução da obra. Depois de lançado, também não há clímax. O escritor não fica sobre os ombros do leitor acompanhando cada nuance de expressão, esgar de desaprovação, esperando os aplausos ou apupos ao final de cada capítulo. Em quase a totalidade dos casos o autor nem sabe se sua obra encontrou (produziu?) eco ou não.

 

E, por favor, não me falem de lançamento; lançamento é festa, louvação, o livro ainda não foi lido, todas as obras se igualam, não entram na equação, são apenas abraços e tapinhas nas costas.

 

A pergunta, voltando, era sobre o que eu achava do projeto, da união entre música, palavra escrita e palco. A resposta foi mais ou menos essa que aprofundei nesses últimos parágrafos.

 

O show começou com Chacal lendo poesias em dueto com o sax de Marcello Magdaleno. Em seguida o poeta saiu de cena e entrou o restante da banda (Marcelo Chaves, guitarra, Pompeo Pelosi, bateria, Roberto Medeiros, baixo, Chiquinho Vaz, piano).

 

O segundo convidado a subir ao placo foi o escritor Paulo Thiago de Mello. Antes do show ele disse estar muito nervoso. No palco não pareceu. Foi muito bem.

 

Depois de mais uma seqüência de músicas, minha vez. Primeira vez num palco, nunca fui garoto de bandas ou teatro. A luz, de fato, cega, o que é bom. Você se sabe visto, mas quase não vê. Li o início do primeiro trecho combinado à capela, para usar um termo musical. Tudo muito rápido, sem tempo para nervosismo. Num respiro entre parágrafos a banda entrou tocando, competência de quem sabe o que faz, o texto cresceu automaticamente.

 

Entre os trechos, como combinado, eu dava uma pausa mais longa, deixava a banda curtir a música, improvisar. Interessante que o que guardarei dessa noite é muito menos a leitura e mais uma cena que aconteceu enquanto esperava no palco para ler o último dos trechos. Ao lado, num banquinho parecido com o meu, uma velha Olivetti repousava suas teclas e página em branco. Marcello Magdaleno aproximou-se, a banda tocando blues, e começou a teclar. O barulho da máquina de escrever é a trilha do som da imaginação trabalhando, da produtividade. Mas, não sei se de propósito ou não, Marcello só teclava em uma letra, no máximo em duas; aquela cena uma metáfora muito bonita do desespero do meu personagem, o escritor que não consegue mais romper sua imobilidade.

 

Para encerrar a noite, depois de nova seqüência de música, entrou Otto. Pediu licença para ler, pela primeira vez publicamente, uma poesia que fez. Tremia. As mãos mal agüentando segurar o papel, a voz receosa, emperrando. Cantor e compositor, vinte anos de palco, acostumado a cantar suas próprias músicas, mas tremia.

 

Valeu. À noite, o convite da banda do projeto MaPa, a experiência de ler minha literatura num palco. Mas continuo achando que literatura é a arte mais anticlimática que existe.


5 Comentários so far
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Flávio, isso é porque você não faz poesia, ela própria um deleite do início ao fim. gostei de ler o que rolou no MaPa, não pude ir. beijos,

Comentário por paula

Não confunda alhos com bugalhos. Escrever poesia não é diferente de prosa nesse sentido. Climático é que não é. Se você está falando de declamar a poesia é outra coisa, mas não o escrever.

Comentário por decabecabaixa

Salve! Quer dizer que foi bacana? Esse lance da marcação do ritmo na máquina de escrever o Marcello fez comigo no ano passado. De fato, fica bem legal…

Comentário por Marcelo

Flávio, acho que a poesia se presta mais à leitura em cena. Por mais concreta e livre que seja, os versos meio que marcam o ritmo e o tom da declamação. Com a prosa é diferente. O enredo se impõe, nem sempre no ritmo curto e freqüente dos versos. Acho mais difícil (embora a apresentação do Moutinho tenha fluido muito, muito bem). No meu caso, não sei o que me deu ali. Quando subi no palco, toda a inibição desapareceu, como por encanto e li tranqüilo. Foi ótima a experiência. Abraços.

Comentário por paulo thiago

[…] produtora do MaPa me mandou uma foto do evento. Engraçado que é justamente o momento que cito no texto abaixo. Em primeiro plano, Marcello Magdaleno tecla a Olivetti. Escrito por decabecabaixa Arquivado De […]

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